segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

where do the children play?





eu olho as crianças de berlin com uma atenção que eu nunca dediquei a seres desse tipo antes. à noite eu baixo fotos ou filmes que fiz no dia e sempre encontro muitas crianças neles. até você já notou. crianças nunca me atraíram esteticamente. e crianças berlinenses que vivem em prenzlauerberg não têm nenhuma especificidade, fora o fato de serem loiras e terem bochechas rosadas. sequer fazem o meu tipo. eu fico pensando se esse súbito interesse por crianças não seria uma espécie de manifestação hormonal. afinal, quando você faz trinta e especialmente se é mulher, deveria começar a pensar em ter filhos. é verdade que de alguma forma nós já pensamos nisso. já temos um plano. mas ainda achamos que não é a hora certa para executá-lo. eu fico me perguntando se estou apenas vivendo mais um capítulo da batalha interminável entre os meus hormonios e a minha cabeça. de um lado, o desejo de reproduzir imediatamente, enquanto todos os orgãos implicados funcionam bem e estão no auge de sua vitalidade e, do outro lado, a força contrária sempre tendente a planejar coisas no futuro e a racionalizar sobre o momento ideal para. a enumeração de coisas que tenho a fazer antes de ter um filho. a contabilidade dos prós e contras. será que quando olho para as crianças ao meu redor meu olhar é apenas um resíduo desse conflito interno e silencioso que assola mulheres em idade fertil? eu continuo achando que instintos de maternidade não são suficientes para explicar o que eu sinto. eu já não tenho problemas em ser reduzida a forças animais. eu tenho crises existenciais horríveis nos meus períodos de tpm e já me adaptei à idéia de que até mesmo a lua pode influenciar mais o meu comportamento do que uma sessão de psicanálise. a verdade é que nunca seremos capazes de explicar em que medida tudo aquilo que tentamos digerir racionalmente são na verdade obra dos nossos hormônios ou do nosso metabolismo. ou do acaso. ou do destino. coisas que têm um modus operandi misterioso e secreto. grandes demais para alcançarmos. mas quando você me olhou de perto e fez em voz alta a mesma pergunta que eu de alguma forma já vinha me fazendo eu primeiro desconfiei das suas intenções, mas depois só deixei o desconhecido entrar para sentí-lo. e eu consegui perceber que quando eu olho para as crianças que andam pelas ruas de berlim em pequenos trenós, eu simplesmente quero ser uma delas. eu quero estar sentada no trenó e não quero ser a mãe que anda na frente e o arrasta.
talvez seja só cansaço de estar ereta o tempo todo. mas também pode ser simplesmente o desejo de sentir o frio na barriga a cada deslizamento. a sensação de que vc pode andar entre as pernas dos outros e não precisa saber para onde está indo. quanto mais eu tento prestar atenção nos meus desejos, eu entendo que eles estão sempre no presente. as formulações que usam verbos no futuro saem da cabeça e não do coração. o dia que vc entende isso, começa a prestar mais atenção nas soluções simples, quase primitivas, formuladas com poucos verbos. eu sou, eu quero, eu tenho. eu amo. o cerne do nosso ser é imagens, cores, cheiros, sensações e desejos. que só podem ser traduzidos aproximativamente em frases curtas, formuladas com verbos no presente do indicativo. é essa a lingua que as crianças falam. e as coisas seriam muito mais fáceis se, assim como elas, fizéssemos mais afirmaçoes no presente do indicativo. se deixássemos um pouco de lado o passado e o futuro e abandonássemos o subjuntivo. com muito mais razão, o pretérito do subjuntivo. o que eu teria feito? o que eu teria sido? em que série da escola aprendemos esse tempo verbal? em que série aprendemos a nos arrepender? por que aprendemos na escola tanta coisa que não importa? se eu não souber usar o pretérito do subjuntivo, a vida simplesmente foi o que foi. e isso está muito perto do real. a minha vida foi o que foi e é o que é. e está tudo bem assim. estou quase no meio dela e me sinto bem so far. a questão é que quando se chega quase no meio dela, vc entende que não quer disperdiçar tempo com elocubrações inúteis. you just happen to be here. num parque cheio de neve fofinha, onde vc pode correr e sentir seus pés afundarem ou fazer um bolo de neve com as mãos só para destruí-lo no momento seguinte e atingir algum alvo fácil. o que importa para nossa felicidade está a uma distância bem pequena do que chamamos de agora. uma casa quentinha e um leite com chocolate. talvez algumas horas fazendo colagens, dançando na sala ou folheando revistas. a companhia quente da sua familia. eu acho que talvez tenha sido exatamente por isso que vc tatuou o seu braço: só para não ter medo de começar uma guerra de neve quando ninguém estiver prestando atenção nos seus movimentos. é preciso agir. e lembrar-se todos os dias que isso só acontece no presente. as coisas importantes habitam o presente. por isso é que definições, conceitos, rótulos, arrependimentos, consequências ou previsões são jogos de adultos. e eu não tenho vontade de jogá-los, ainda que me digam que isso é não querer crescer. se você não é eterno, assim como eu, talvez prefira passar uma tarde inteira estreiando seu giz de cera e desenhando em folhas brancas.
sim, perceber isso é algo que acontece lentamente. talvez eu demore mais trinta anos para desfazer todas as camadas de razão que estão agora sobre o meu corpo. acho que é por isso que os velhos se parecem com crianças. eu sei que ainda faço muitas formulações em modos e tempos complexos. todos os dias falo um monte de frases no futuro. ou ao menos penso nelas. talvez isso seja apenas medo de me jogar profundamente no desejo do presente. medo de experiencias cujas consequencias não poderei controlar. como se eu pudesse controlar aquilo que eu ingenuamente acho que está sob meu controle agora. por que é tão difícil aceitar a contingência radical da vida?
eu passei bastante tempo sem sequer entender isso. querendo evitar o momento em que a brincadeira poderia simplesmente acabar. o seu amigo olhando para você e dizendo que não quer mais brincar. sem precisar explicar nada. a frustração intrínseca de todas as nossas relações, que não precisamos que sejam mascaradas. seria melhor se não estivessem. a sinceridade que os adultos não têm. sim, podemos ficar tristíssimos quando o universo que construímos e vivemos intensamente naquela tarde no parque simplesmente desaparecer porque ele não quer mais. podemos chorar. sentar no canto e emburrar a cara. querer nos vingar e não emprestar o brinquedo que ganhamos no natal. podemos recorrer aos nossos pais e eles não poderão fazer nada a respeito. só oferecer colo e fazer carinho na nossa cabeça. eles vão dizer que isso acontece, mas que tudo vai ficar bem. e o melhor que temos a fazer é acreditar nisso. na maior parte das vezes, é disso que precisamos: carinho na cabeça, um banho quente, depois colocar o pijama limpo, com cheiro de amaciante. arrumar a calça do pijama para dentro das meias, para não sentir frio nas canelas. tudo vai ficar bem na manhã seguinte. ainda que nada possa ser feito. e nem por isso eu vou deixar de acreditar que bonecos de neve têm vida. lidar com a dor das frustrações e dos desejos desencontrados é a melhor coisa que nossos pais puderam nos ensinar. um mundo sem mentiras e sem paliativos. eu não entendo porque nossos professores nos faziam tantas perguntas sobre o que queríamos ser quando crescer se o melhor que podemos fazer agora é voltar a ser crianças?

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