sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

würgeengel, melancholie ou só a sensação de estar derretendo como a neve.

o dia começou como a repetiçao dos anteriores. o despertador tocando e eu não conseguindo sair da cama em um horário compatível com aquilo que se convencionou chamar de manhã. a manhã não tinha nada para me dar e vivê-la de outra forma que não fosse na cama aquecida com o calor do meu próprio corpo simplesmente não me pareceu atraente. não compensaria o esforço de abadonar o casulo. além do mais, meu quarto está sempre gelado pela manhã e colocar o meu corpo para fora das cobertas era uma auto-violência, que, ao longo do diálogo que eu silenciosamente travava com o snoozer do despertador, me pareceu irracional. eu vivia a falta de luz como uma planta que não encontra estímulo para exercitar seu fototropismo. eu simplesmente não era atraída por nada.

por isso eu desliguei o relógio e acordei novamente apenas três horas depois, já com uma espécie de nostalgia de mim mesma. quando vc mergulha fundo na própria escuridão, há sempre o risco de demorar para encontrar o caminho de volta. pela manhã, meus olhos só vêm vultos. às vezes pequenas bolas brancas que dançam de um lado para o outro. às vezes linhas coloridas que flutuam como nuvens. lavar o rosto com água quente pode ajudar os olhos a distinguir o que é real do que é irreal. aos poucos. mas não terá nenhum efeito sobre o mutismo dos cafés da manhã solitários. ou sobre a efemera constatação de que meus diálogos internos estão girando em falso e não há quem os queira ouvir. encontrar de novo um trilho para eles talvez seja algo dificil de se fazer quando a água chega ao pescoço e apenas a pontinha dos pés pode tocar o fundo. não sei se já é hora de precisar de um salva-vidas. ou é só a subjetividade precisando ouvir a própria voz para acreditar que pode nadar. eu me senti melhor depois das duas xicaras de café quente, enquanto ouvia as notícias sobre a previsão do tempo e a privatização do sistema de transporte público alemão. a vida real tentando penetrar pelos meus ouvidos. por um segundo, sair imediatamente para a biblioteca me pareceu um bom plano para o dia. mas logo depois me sentia tão esgotada quanto os ingressos que não conseguimos comprar. e tão sozinha como a ultima poltrona disponível para a sessão do dia catorze. depois eu simplesmente deixei de prestar atenção. o fim do estado de bem-estar social me preocupava menos do que os quilos a mais que o inverno está me fazendo ganhar. esse seria um dia mais triste que os anteriores.

uma espécie de anjo exterminador me fez postergar o caminho da rua. eu fiquei horas sentada no computador, me ocupando de tarefas desimportantes e ouvindo a neve derreter e derrubar pedaços de gelo na calçada interditada. me senti protegida por ver isso pelo lado de dentro da janela dupla. de acordo com o relógio eu talvez tenha passado uma ou duas horas assim, mas para mim eram centenas delas. tempo suficiente para que o envelhecimento se fizesse notar. eu fui repetidamente refazendo meus planos para o dia. um a um, eles foram se mostrando sucessivamente inviáveis. as possibilidades me oprimiam. por falta de decisão, eu cheguei até a consultar o horóscopo, mas suas previsões apenas me cansaram. a liberdade quando não exercida é um peso. só quando comecei a ouvir o barulho forte dos macacos nas jaulas do andar de cima é que eu supus que um pouco de ar fresco pudesse me fazer sentir novamente como se eu de fato tivesse alguma autonomia na condução do meu dia. alimentar essa ficção era exercer o resto de misticismo que me sobrou.

eu parei quando o farol de pedestres estava vermelho, ainda que não pudesse avistar nenhum carro se aproximando em nenhuma das direções. o tram que ia para a schwarzkopfstrasse estava parado no ponto e parecia desligado. havia aparentemente condições objetivas de segurança para eu atravessar a rua, mas eu simplesmente não queria ser responsável por essa decisão. queria apenas me jogar confortavelmente no reino das expectativas normativas, esperar o sinal verde e atravessar sem olhar para o lado. eu estava confortável dentro do meu casaco, do meu cachecol grosso e da minha música e deixei que apenas as minhas pernas ficassem responsáveis por reagir ao movimento da rua . quando eu terminei de andar e cheguei à calçada do outro lado, me senti como uma lua vazia. eu procurei a cabine de fotos de que vc fala, só para ver como seria tirar uma foto de uma lua vazia. depois eu pensei que teria direito a cinco poses e seria um desperdicio usá-las justo no dia em que não eram possíveis variações. eu cheguei na praça do teatro e seu espaço vazio era um lugar para o encontro de correntes de vento frio vindas de todas as direções. pela primeira vez no dia, eu chorei. e o vento frio congelava as lágrimas penduradas no meu rosto. elas doíam como cortes na pele feitos pela borda afiada de uma folha de papel em branco. eles são bem finos, imperceptíveis a olho nu, por isso demoramos para identificar as causas da dor. uma dor fina e delicada, bastante suportável. não havia um grito.

da praça do teatro, saem várias ruas e eu podia tomar qualquer uma delas. quando eu tentei pensar em algo, só me vieram lembranças. imagens misturadas das vezes em que passei por aqui. eu resolvi ficar só com uma delas, a mais antiga. por isso, resolvi pegar a rua em que havia a pequena quitanda chinesa onde eu parei para comprar maçãs verdes naquela tarde de primavera. o dia em que eu encontrei esse teatro por acaso enquanto andava de bicicleta pela cidade e parei para comer maças verdes na grama dessa praça que hj está coberta por meio metro de neve. a venda chinesa me pareceu mais triste do que da primeira vez. não há produtos coloridos expostos na calçada. não havia ninguém comprando folhas verdes para a salada fresca do jantar. eu não tive vontade de comprar maçãs verdes. todos os clientes da quitanda chinesa pareciam estar agora na livraria que fica do outro lado da rua. eu entrei ali para tentar esquentar um pouco o corpo e pensei em quantas pessoas que olhavam atentamente os livros não teriam sido atraídas pelo mesmo propósito. eu tinha certeza de que compartilhava o mesmo hálibi com alguma das companhias anônimas daquele lugar. as horas na livraria folheando o que viesse a minha frente acalmaram de alguma forma o sofrimento das coisas ausentes. os fanzines em impressões de baixa qualidade me fizeram sentir acompanhada. me deu um senso de concretude para a palavra viabilidade. quantas pessoas no mundo não estariam sentindo o mesmo tipo de angústia? a vontade de falar algo que está além dos meios de expressão que estão a minha disposição. a insuficiência das palavras. a somatizaçao do silencio e do cansaço no próprio corpo. no canto da estante, um livro sobre a condição do artista na sociedade pós-fordista. eu sequer abri para ver o índice, porque ele não falaria nada para mim.

a paralisia é um tipo de proteção natural contra o horror. às vezes você tenta se descobrir e acha que é possível distinguir o que é você mesmo e o que não é. mas chega uma hora que enxerga uma massa cinzenta de coisas em que já não é possível diferenciar o que é seu e o que é externo. o que sai da sua boca não é vc mesma. mas também é. a vida que vc leva não é a vida dos seus desejos. mas também é. às vezes seus atos são automáticos, porque vc apenas segue as placas, as regras e os caminhos já traçados. vc é obrigado a viver em um mundo pronto, que já existe e está cheio de coisas, de prédios e de pessoas. vc se move e esbarra em desejos alheios que vão machucando e fazendo pequenas lascas no seu próprio desejo. vc é obrigado a responder sempre pelo mesmo nome, quando queria poder responder apenas “eu”, seja lá o que essa palavra queira dizer a cada vez que vc a pronuncia. tem sempre os dias em que vc já não reconhece mais a própria voz e não entende mais o que te escrevem nos emails que recebe. esse é o dia em que percebe que encontrar o eu é destruir o eu.

mas você ainda pode sobreviver a esse dia se decidir se abandonar completamente no outro. decidir segui-los pelo passeio na neve. pelos caminhos que você não escolhe. ouvindo a música que vc não escolhe. entrando em lugares que você não escolhe. vc vai aos poucos percebendo que está viva quando eles olham para trás para ver se vc está ainda acompanhando o ritmo. de repente vc percebe que pode desviar dos caminhos traçados nas calçadas e andar pela neve fofa, inaugurando um percurso novo só para sentir o prazer de largar o peso do pé na neve virgem. tudo aquilo que vc estava procurando é só um corpo vulnerável à dor e ao prazer. e se vc permanecer nele, ele pode te transportar para além de vc mesma. vc finalmente percebe que pode viver fora de vc mesma. e que isso é muito bom.

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