domingo, 7 de março de 2010

adeus kollwitztrasse 52.




Já não faço o mesmo caminho para voltar para casa. Não vejo mais as luzes verdes do bar embaixo do prédio, que anunciavam o destino próximo e quente. A alegria de estar a poucos passos de um ar que já não machucaria o rosto. Estar prestes a evitar o congelamento iminente dos dedos da mão. Para chegar em casa, já não abro a porta de madeira pesada para entrar primeiro no hall escuro; não passo embaixo da cabeça do alce pendurada no alto da parede direita; não subo um lance de escada pisando firme os degraus e ouvindo o som oco da madeira. Não avisto mais a porta cinza, o desenho que vc pregou na parede quando nos mudamos; não giro a chave olhando para ele e lendo pela milésima vez – “we are alive, so we moved in”. Lembrar disso todos os dias por dois meses despertou um senso de responsabilidade pela vida que eu não quero mais perder. Mas em um segundo esses pensamentos seriam interrompidos pela iminência de despejar no chão do corredor o casaco, o cachecol, a toca de lã e as luvas. E eu finalmente tiraria o sapato sujo de neve e lama e o colocaria ao lado da porta. Mas agora já não mais. Já não tenho que pensar no fato de termos de novo esquecido o aquecedor ligado e nem me preocupar com a conta que não virá em nosso nome. Nem na possibilidade de que um de vcs esteja em casa. Não estarão. A possibilidade de se surpreender ao abrir a porta e entrar em casa é algo que só se tem qdo não se mora sozinho. Sem cachorro, gato ou faxineira ela é remota. Não há surpresas sem o outro. A possibilidade de encontrar os móveis em outro lugar e poder observar os rastros de uma vida que não é a sua e que fez percursos diferentes do seu durante o mesmo dia. Ainda que o que tenha ficado à vista seja apenas o bilhete usado de metro e o flyer de uma festa que já passou. A comunicação por meio das coisas que escolhemos deixar aos olhos do outro é tão misteriosa e baseada em suposições quanto palavras . Depois eu percorreria o corredor até o fim, iluminado pela luz amarela de uma noite sem janelas. Passaria pela sala, colocaria pra tocar o vinil que já estaria posto na vitrola. A herança deixada pelo ultimo a sair. Eu gostava de não ter sido a última a sair e poder encontrar o Cash ou o Van Zandt que vc teria colocado pra tocar à tarde, quando estava se divertindo com a sua solidão e com o beque que vc teria fumado sozinho. Antes da gente chegar. Uma epifania que só faz sentido se se tem a perspectiva próxima da companhia. As suas duas companhias estariam a caminho. Um dia vc me surpreendeu com o vinil novo de Adam Green e era um dia em que a voz forte desse menino cantou para os meus ouvidos assustados pelo desconhecido. O dia em que o outro menino misterioso de chapeu esteve em casa e em que comemoramos a expectativa do show que não conseguiriamos ir. E foi esse foi o dia em que todas as expectativas foram defraudadas. O correio alemão falhou bem na nossa vez e tudo o que tínhamos a fazer era pedir o reembolso do dinheiro pago. Como se fosse possível. Como se fizéssemos questão. Com a musica escondendo o silencio da casa vazia, eu andaria até a cozinha para tomar água da torneira e talvez parasse no banheiro antes. Nem que fosse por puro hábito, faria um pouco de xixi. A luz do espelho mostraria a secura da pele do meu rosto e a foto do rio de janeiro no canto esquerdo acima da nossa cabeça mostraria a umidade perdida da retina dos meus olhos. O ar seco do aquecedor ligado o dia todo soprava atraves da minha lente de contato e secava a nossa roupa limpa pendurada nos canos de ar. Hoje havia sido o dia de lavar roupas coloridas. O cesto cheio de roupas brancas esperando a hora certa, porque tudo tem uma hora certa para acontecer. E vai acontecer quando e onde vc menos espera. Vc cortara seu cabelo e seus cachos estavam agora jogados no lixo do banheiro. Como flores que não estão mais no vaso e que estao condenadas a secar. Como o vestigio de uma auto-mutilaçao que vc fingia querer suportar em silêncio. Na cozinha, eu tomo a água da torneira e já nem ligo para o excesso de calcario. A agua é um liquido branco e espesso, que sai pesado da boca da torneira e chega pesado na minha. Eu abriria a geladeira e notaria que já não temos muito o que comer. Penso em ir ao mercado 24 horas da kastanianallee nem que seja para comprar yogurte para o café da manhã. Eu compraria um pote de yogurte natural com a menor porcentagem de gordura possível para nós dois e mango-vanilla para ele. Mas terminaríamos todos comendo mango-vanilla em alguma noite longa em que teríamos consumido nossas energias dançando deep house. Comeríamos sem pudores diretamente da embalagem de vidro. Tem sempre uma hora da madrugada em que fazemos coisas que não ousaríamos fazer no café-da-manhã. Então eu pego a única maçã que restou no fundo da gaveta de legumes. Ela já está um pouco murcha, mas é só o que há, além dos biscoitos de arroz, que me parecem secos demais para essa hora do dia. Lavo a maçã e saio para caminhar pela casa, pensando apenas no fato de que maçã é uma fruta bem prática para se comer andando. Encaro a janela da sala e vejo pedestres tristes passando lá embaixo, pisando a neve da kollwitzstrasse. Uma visao que não se repetiria em um futuro próximo. O sentido de transitoriedade que eu já sabia que deveria existir, mas que eu negava. Agora que voltei ao sul, já não uso mais tanta roupa. Não separo o lixo com tanto capricho. Não espero mais o sábado pela feira de produtos organicos e frescos trazidos por produtores locais ao centro do bairro burgues de berlin. Não tem mais tantas variedades de yogurte na geladeira. Minha fome é saciada com coisas diferentes. Nao há mais a alegria de ter encontrado na padaria o nosso pão preferido, com grãos de centeio molhadinhos, que comeríamos juntos na mesa da cozinha, provavelmente coberto com uma fatia de queijo de cabra fresco, sob a luz amarela e o silencio do sono chegando. Assim como esquimós e suas muitas palavras para designar os diferentes tons de branco, que não fazem nenhum sentido para nós, eu sinto um conjunto de palavras que vão aos poucos desaparecendo e entrando em desuso no meu vocabulario. Snow-rain nem mesmo existe em portugues. Não importa mais saber se a neve das ruas de berlin está fofa ou já endureceu e virou gelo. Isso já não pode interferir em nosso equilíbrio. Nem os ventos que vêm da Rússia. Já não importa saber em qual lixo jogar a embalagem vazia do suco de frutas artificiais. Nem consultar a tabela de calorias para ver a diferença entre o müsli sem açúcar e o müsli crocante de mel e coco, pois não estão à venda aqui. A que horas sairá o próximo metro da estação Senefelderplatz direção Ruhleben na noite deste sábado é uma informação que continuamos podemos acessar no site da bvg , mas ela já não diz se temos que nos apressar ou temos tempo para um ultimo cigarro ao lado da porta. Ela já não tem efeito em nossa vida. Há uma série de hábitos, circunstancias, cheiros, objetos, lugares e pessoas que estão aos poucos perdendo o poder de interferir no curso da nossas vidas. É como um universo aprisionado em uma bolha de elementos auto-referentes, que aos poucos vai se desmanchando. E por um instante eu tenho medo de que eles desapareçam da nossa memória como as fotos tiradas em filmes polaroids perdendo a cor. Por um instante eu me vejo entre o desejo de me livrar do entorpecimento da nostalgia e o medo de deixar tudo isso morrer. Acho que é exatamente quando se está aí no meio dessas duas coisas, que vc entende de verdade o que é a memória. Se o passado não é contemporaneo do presente, mas o presente nunca vai ser o presente sem coexistir com um passado que já foi presente, significa que não seremos hoje, sem ter o que fomos. E isso é só o tempo abrindo mais um sulco dentro de nós para guardar num arquivo zipado cada instante daquilo que vivemos numa cidade real, bela e feia ao mesmo tempo, suja e organizada ao mesmo tempo, reunificada, mas também dividida, cheia de historias de guerras e de amores; no inverno mais rigoroso dos ultimos tempos; com a neve mais persistente dos ultimos tempos; numa das casas mais lindas que já estivemos; onde cada um de nós esteve ao lado de duas pessoas que foram toda a sua familia na noite de natal; e que se amaram o suficiente para não deixar o coração congelar. O presente é o estado mais contraído desse momentos que já não mais se repetirão. O presente é o paradoxo estranho entre a preexistencia e a coexistencia de todas essas coisas, mesmo que eu não veja mais a paisagem branca pela janela. Mesmo que o nosso lar berlinense seja hj só um monte de caquinhos impossíveis de serem colados. Mesmo que Kollwitzstrasse 52 seja um lugar que não existe mais. We are alive, so we moved out.

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